Como um jogo: a história começa, mas logo haverá outra história e nessa brincadeira entre uma e duas (em que talvez caiba à segunda o papel de variação, repetição ou de uma metamorfose completa) poderá surgir uma terceira... O certo é que, nas regras desse jogo de desdobramentos, se o filme recomeça, espectadores também devem recomeçar e o três acontecerá mesmo na persistência da memória de quem é levado a ver e rever, pensar e repensar, configurar e reconfigurar um universo que aparentava ser uno e agora está sob o risco do infinito.
Cavoucando o inventário da primeira década dos anos 2000, vem a lembrança da aparição de alguns filmes de diversos territórios e com propostas estéticas heterogêneas que provocavam uma inquietação semelhante: é possível que um mesmo mundo exista de outra forma? O tempo ajuda e talvez hoje seja fácil aproximar tantos outros que irrompem com a abertura de uma misteriosa caixinha azul, com uma estrada ensolarada ao som de uma versão tailandesa de “Samba de Verão”, com a crise de sarampo que isola o aniversariante de 30 anos numa casa de campo, com a simpática dona de uma cantina que vê em duas pessoas que acabaram de se conhecer um casal de toda vida[1].
Como veremos, a partir dos anos 2010 os exemplos se multiplicam e se espalham. Há novos representantes, mais próximos de nós, nessa coleção de acontecimentos transformadores: a descoberta de um caderno de um homem adormecido em Ouro Preto, um inesperado crime cometido por um garoto, o nascimento de um bebê lobisomem, os ensaios de uma peça de teatro que fazem a trama do António tornar-se um texto sobre o António...
Não é o caso de uma inspiração emprestada. Na convulsiva paisagem brasileira, esse traço ganha corpo de fato na última década e revela um expressivo conjunto de obras que propõem uma relação própria com essa ideia vibrante que o cinema do novo século roubou de vez para si: a de que um mundo pode realmente tornar-se outro durante a projeção de um filme.
UMA SOBRE A OUTRA?
A recorrência mais misteriosa, nesse conjunto, é a do filme dividido em dois. Em Arábia (2017), de Affonso Uchôa e João Dumans, tudo muda quando um adolescente, até então protagonista, descobre um caderno e, a partir dele, um novo mundo; e se o narrador desse mundo introduz a sua coleção de memórias explicando que contará uma história de amor (mas que antes precisa contar outras histórias), notamos que dentro dessas outras histórias há ainda outras: cartas, piadas, canções, sonhos... É assim, nesse despertar da consciência a partir do exercício de repensar as próprias vivências sob a forma narrativa, que o suposto coming-of-age de um menino é interrompido bruscamente para que outra coisa roube a cena, algo como um coming-of-rage de um trabalhador. Já em Garoto (2015), variação sinuosa do “woman meets boy” característico de Julio Bressane, não por capricho inspirado em Jorge Luis Borges, o imprevisível crime cometido pelo interlocutor silencioso tira o casal – e o próprio filme – do piquenique na relva e os atiram numa espécie de maldição estética: o som do vento agride, as palavras viram pedra, o verde abundante resseca; em suma, o filme do prazer torna-se o filme da danação.
Nota-se que a metamorfose de Garoto acontece exatamente na estrada perdida recorrente da filmografia de Bressane, espaço já mítico do cinema de invenção que inspirou um belíssimo (e pouco comentado) filme na última década, Rua Aperana 52 (2012), conduzido a partir de fragmentos de dezenas de histórias, continuamente realizadas no local, em mais de cinquenta anos de cinema. Se um dos inevitáveis efeitos da obra é pensar na matriz bressaniana para esse tipo de jogo com a multiplicação do “era uma vez” dentro de um mesmo filme, nem é preciso revisitar com lupa e tesoura a prateleira marginal(izada) para lembrar de Matou a Família e foi ao Cinema (1969) e suas tramas interrompidas e recomeçadas; e pensar nas tantas duplas de mulheres, entre donas de casa entediadas, colegiais vingativas e pistoleiras apaixonadas, que Renata Sorrah e Márcia Rodrigues vivem nessa obra eternamente inaugural.
Estabelecido num tipo de jogo (“uma filma, o outro é filmado”) definido pelas condições de produção, A Misteriosa Morte de Pérola (2014), de Guto Parente e Ticiana Augusto Lima, ao mesmo tempo tece os fios da ficção fantasmagórica sobre diferentes momentos em que um homem e uma mulher sentem que são observados numa casa ameaçadora. Já em As Boas Maneiras (2017), de Juliana Rojas e Marco Dutra, temos outro terror que lida com essa estrutura díptica numa abordagem ainda mais radical – um filme que não apenas começa duas vezes, mas que chega duas vezes a um desfecho, com dois clímax viscerais. Subverte, de alguma forma, o princípio do português Miguel Gomes (para ouvir uma história é preciso ter paciência com as novas histórias que surgem antes de um fim) tão vislumbrado no período contemporâneo, com um novo princípio: é preciso ter paciência para descobrir mais uma história depois que a primeira chegou ao fim.
Um caso ousado, nessa interlocução de princípios, é o de António, Um, Dois, Três (2017), de Leonardo Mouramateus. Quando os ensaios de teatro entram repentinamente em cena e revisitam a trama inicial, a do jovem lisboeta que foge de casa e procura um refúgio na casa da ex-namorada, pode-se já suspeitar que, mais vezes ao longo desse filme, o garoto encontrará uma desculpa para visitar a casa dela e lá descobrirá, por acaso, uma turista brasileira enfeitiçada pelo sono. No jogo de Mouramateus, as releituras se reconfiguram, ultrapassam os limites do duplo e revelam uma singularidade: cada revisitação introduz um novo elemento ao filme (o teatro na primeira; as Noites Brancas de Dostoievski na segunda...) que será revisitado no desdobramento seguinte e assim por diante.
Vale destacar, no exemplo de Mouramateus, que essa semente do desdobramento já vibrava em sua produção de curta-metragem, a partir da relação de continuidade e reelaboração de um mesmo universo entre diferentes obras. A experiência de assisti-los em uma mesma sessão (no festival Cine Esquema Novo de 2016) potencializou a combinação entre História de uma Pena (2015) e A Festa e os Cães (2015), por exemplo, e inclusive favoreceu a vontade de pensá-los como um filme só dividido em duas partes – duas variações do “filme de galera”; a primeira em torno das situações vividas, relembradas ou sonhadas por estudantes numa aula de literatura; a segunda, cujo ponto de partida são justamente as imagens das filmagens de História de uma Pena, com a narração sobre um passado (mas também um futuro) festivo enquanto acompanhamos uma sequência de fotografias.
No horizonte dos curtas há outro filme seminal, Na Missão, com Kadu (2016), que transforma o uma sobre a outra em one plus one. A montagem de uma sessão de cinema numa ocupação parte o filme em dois e aproxima imagens produzidas em diferentes contextos: aquelas realizadas por Pedro Maia de Brito e Aiano Bemfica que mostram Kadu, sereno, rememorando suas histórias nas conversas em volta da fogueira, e aquelas intensamente filmadas pelo próprio Kadu, no campo de batalha e sob o ataque de bombas de gás. Haverá, ainda, uma terceira imagem, uma tela preta com uma informação textual que impedirá que o filme chegue realmente ao seu fim. Essa ideia do desfecho impossível – que puxa a perna do infinito e transpõe o seu sonho tranquilo para o pesadelo das violências históricas brasileiras – leva-nos a outro curta, República (2020), realizado por Grace Passô durante a pandemia do Covid-19. O fim não encerra o filme e há uma ideia de recomeço com a entrada em cena de um duplo indesejável da personagem. Com essa nova presença, o seu alívio desesperado (a descoberta de que o Brasil é um sonho) acaba envenenado: era uma vez “um país que acabou”; era outra vez “um país que nunca existiu”.
UMA CONTRA A OUTRA?
Como esses curtas-metragens sinalizam, nem sempre o jogo acontece de modo harmonioso; as diferenças muitas vezes são inconciliáveis. Em Os Dias com Ele (2013), de Maria Clara Escobar (a quem voltaremos mais adiante), há, na premissa, um filme de reencontro entre filha e pai. Mas é notável, de cara, o fato de que a obra não avança. Entre tantos embates em cena, chama atenção o conflito a respeito dos possíveis filmes que podem existir. Maria Clara, diretora e personagem, quer construir uma memória que não tem e, ao mesmo tempo, refletir sobre os silêncios históricos do país. O pai e personagem, Carlos Enrique Escobar, deseja outras coisas e logo sugere o avesso de tudo: “começar com um certo nível de mentiras”. Nesse impasse, surgem outras propostas assertivas, mas não acontecem nem os filmes sugeridos por ele e nem o filme planejado pela diretora – fica, assim, a impressão vertiginosa de que a obra começa e se interrompe a cada cena.
Algo semelhante ocorre na animação A Cidade dos Piratas (2018), de Otto Guerra. Há um filme sendo produzido sobre Piratas do Tietê, obra célebre de Laerte, mas as redefinições de vida e obra que a autora vivenciou na última década transformam o projeto inicial em um barco à deriva. Num sentido diferente ao do filme-impasse de Maria Clara Escobar, Otto e sua trupe aparentemente resolveram, diante da crise, realizar todos os filmes possíveis ao mesmo tempo. A consequência não é algo parecido com um longa-metragem, mas uma arena psicodélica construída para que diversos fragmentos de obras briguem entre si[2].
Essa ideia do filme em conflito também facilita a compreensão daquilo que, em um primeiro olhar, parece problemático em uma obra central do fim da década: Todos os Mortos (2020), de Marco Dutra e Caetano Gotardo. Na primeira cena em que personagens discutem em tempos diferentes, uma no século vinte e um e outra no enterro do dezenove, pode surgir a impressão de que os diretores não seguraram a barra de realizar um drama histórico protagonizado por uma família branca decadente – e racista – no Brasil dos anos 2010. Antes mesmo de escancarar todos os seus anacronismos, a cada cena o filme começa a deixar claro que é justamente sobre isso: essas personagens ainda precisam conviver? Cada sequência reafirma essa divisão radical que põe em choque os dois filmes que acontecem simultaneamente, um que se projeta para muito além daquele território sombrio (o do fetiche pelo casamento forçado da violência branca com o sofrimento negro) e um que definha (e que tenta seduzir à sua própria morte quem não quer estar ali).
SOB O SIGNO DE SHERAZADE
Outra relação com o gosto pela abundância de experiências pode ser vista no longa-metragem que Paula Gaitán lançou nos últimos suspiros da década. Com 4 horas e 20 de duração, Luz nos Trópicos (2020) propõe uma aventura tão sedutora quanto inacreditável: criar um cosmo cinematográfico onde coexiste harmonicamente uma multiplicidade de mundos diferentes. Se não há um acontecimento transformador que faz o uno virar infinito, é porque o próprio filme já é esse acontecimento e a busca aqui é de outra ordem, pensar o infinito como uno possível, sonhar com as mil e uma noites acontecendo em uma mesma – e longa – noite com a consciência politicamente contemporânea de que, mesmo num universo minuciosamente organizado, uma estrela sempre será uma estrela.
Esse aspecto, aliás, favorece a ideia de uma sessão dupla improvável com o monumento de Gaitán e Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava (2017), de Fernanda Pessoa, cuja missão – muito bem-sucedida – é organizar uma narrativa bem coerente e assim recontar a década de 1970 brasileira a partir de fragmentos de obras muito particulares, às vezes até antagônicas, do cinema erótico produzido no período.
Na relação desejosa com a multiplicidade, Luz nos Trópicos intensifica, trocando o íntimo pelo épico, a abordagem de Gaitán em Exilados do Vulcão (2015), que desdobra a crise de uma mulher em outras imagens de casais aflitos, sem enclausurar um sentido restrito das relações entre um drama pessoal e suas reverberações em diferentes tempos e espaços. Já na abertura da década de 2020, a investigação da diretora repercute essa busca com novas proposições, a partir das repetições e diferenças do tríptico Se Hace Camino al Andar (2021) e especialmente no borgiano Ostinato (2021), documentário sobre Arrigo Barnabé que se parte ao meio e, como num passe de mágica, reconfigura o que foi visto e discutido a partir de uma nova montagem de imagens já apresentadas.
No desafio da sinopse que essas obras tomadas pela multiplicidade provocam, podemos tentar calcular, por exemplo, quantas noites Sherazade levaria para narrar O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho – incluindo os pequenos contos que transbordam no filme, como “o menino e a bola”, “o casal que se pega”, “o porteiro que dorme”, “o argentino perdido” – ao rei sanguinário... Há, no fim, uma obra construída nesse paradoxo estimulante, entre a aproximação dessas histórias (elas fazem parte de um mesmo contexto) e a separação delas, pois as singularidades estão sempre desviando o filme da rota única, algo exemplarmente ilustrado pela bifurcação de tiros e foguetes na cena final. Interessante notar que mesmo em um filme aparentemente mais enxuto como Bacurau (2019), codirigido por Juliano Dornelles, a surpreendente entrada em cena de outros personagens – os invasores norte-americanos – interrompe o fluxo da narrativa e impele uma redefinição das premissas esboçadas a partir dos conflitos da pequena comunidade. O filme é invadido (sem oferecer resistência ao que pode exceder, diga-se, a julgar pela entusiasmada e imediata metamorfose em termos de gênero cinematográfico) antes mesmo da cidade!
Esse traço transbordante – quando há mais histórias do que, a rigor, poderiam caber numa obra – confirma um espírito sherazadiano a partir da vontade desenfreada de narrar. Um exemplo precioso desse sintoma é o do longa de ficção da já citada Maria Clara Escobar, Desterro (2020), que, ao organizar-se numa outra lógica de cronologia narrativa, rompe o aspecto mais asfixiante da intimidade conjugal e abre-se a novas histórias que acabam redefinindo, num caminho sem volta, a própria trama central. No momento mais radical, uma longa viagem de ônibus torna-se algo como uma galeria de ficções, compartilhadas por presenças marcantes de outros filmes dos anos 2010, que implode de vez a realidade apresentada e, inclusive, sugere que se pense, no ventre de um drama individual, em uma retrospectiva sentimental da década do cinema brasileiro.
A VERDADE EM MUITOS FILMES
O conjunto apresentado, no fim, surge de uma aproximação bastante livre que esgarça os limites e as fronteiras das premissas. Não é resultado de um rigor investigativo ou de um mapeamento crítico, mas de uma vontade de programar, ou seja, de levar os filmes às feras a partir de uma provocação conciliadora. O que acontece depois disso ninguém pode prever, e outros programas naturalmente podem ser pensados...
Por que não combinar o apetite narrativo de O Animal Amarelo (2020), de Felipe Bragança, e sua apropriação (auto)crítica da tradição portuguesa da palavra no cinema, com Antes do Lembrar (2017) e Os Olhos na Mata e O Gosto da Água (2020), da dupla Luciana Mazeto e Vinicius Lopes, que buscam no horizonte do filme-ensaio uma possibilidade de montar uma coleção de narrativas heterogêneas.
Ou a atualização contemporânea do filme episódico em O Que Se Move (2013), de Caetano Gotardo, e O Nó do Diabo (2017), de Jhésus Tribuzi, Ian Abé, Ramon Porto Mota e Gabriel Martins, que nos fazem pensar na relação das partes com o todo, com o tríptico sobre a experiência da violência policial dividido entre representação, relato e performance em Sete Anos em Maio (2019), de Affonso Uchôa.
Ou, ainda, aproximar a relação entre criação artística e repetição de Seus Ossos e Seus Olhos (2019), de Caetano Gotardo, e Vil, Má (2020), de Gustavo Vinagre, com dois delírios de Guto Parente, Doce Amianto (2013), em codireção com Uirá dos Reis, e O Estranho Caso de Ezequiel (2016), com metamorfoses compartilhadas entre personagens e os próprios filmes.
Ou, uma vez mais, pensar num programa dedicado ao acontecimento transformador que pode surgir numa elipse, em Praia do Futuro (2014), de Karim Aïnouz; na entrada em cena repentina de um novo personagem, em Ventos de Agosto (2014), de Gabriel Mascaro; no portal que se abre no nosso mágico de oz, Quintal (2015), de André Novais Oliveira; no desaparecimento de uma adolescente, em A Noite Amarela (2019), alucinação lovecraftiana de Ramon Porto Mota.
Ou, quem sabe, um programa com obras que trabalham a ideia da substituição de uma por outra, com a aparição do “era outra vez” num sentido estritamente diegético, como Mãe Só Há Uma (2016), de Anna Muylaert, As Duas Irenes (2017), de Fábio Meira, A Morte Habita à Noite (2020), de Eduardo Morotó...
Se o céu do programador é o limite, recorro, como um atalho para chegar a um fim, à citação destacada por Pasolini em sua célebre adaptação dos contos árabes, uma das poucas que não trai o gosto pelo infinito da matriz: “a verdade não está em um sonho, mas em muitos sonhos”. Esse desejo abusado – porque reconfigura o mundo a partir da afirmação irredutível pela multiplicidade – cai como uma boa síntese para o conjunto um tanto desajuizado de filmes apresentado aqui, mas me faz pensar especialmente em uma obra-prima dos anos 2010: Já Visto, Jamais Visto (2013), e em todos os cinemas que o seu autor, Andrea Tonacci, criou ao longo de sua vida. Este programa é dedicado à sua memória.
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[1] Momentos emblemáticos de Cidade dos Sonhos (2001), de David Lynch; Eternamente Sua (2002), de Apichatpong Weerasethakul, A Cara Que Mereces (2004), de Miguel Gomes, e Cópia Fiel (2010), de Abbas Kiarostami.
[2] Com essa determinação caótica, surge outro desafio entusiasmante: é possível adaptar a subversão narrativa das tirinhas de quadrinhos, no formato do longa-metragem, sem que elas terminem reduzidas a uma história de uma trama só?