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Enquanto me sento para escrever este texto, lá fora a pandemia do coronavírus mostra seus dentes mais afiados e o país bate recortes diários e semanais de mortos e contaminados, fruto de uma situação sanitária e epidemiológica sem precedentes em todo o planeta, mas também do desgoverno bastante particular que o Brasil vivencia justo neste momento em que uma liderança responsável, consequente e humana seria a condição mínima para, se não totalmente evitar uma realidade muito dura, ao menos nos dar a certeza de que vidas não estariam sendo diariamente ceifadas sem necessidade. Paralela, mas complementarmente a isso, as estruturas do cinema brasileiro em particular estão sendo testadas no seu limite, em parte novamente devido à situação sanitária que têm deixado salas de cinema fechadas ou quase desertas, impedido ou dificultado muito a produção de novas obras, mas também radicalizada pela (in)ação de um governo que não esconde seu regozijo com o desmonte dos alicerces básicos de sustentação institucional que permitiram que este cinema encontrasse ao longo da última década uma série de resultados inéditos ao longo de sua história.

Pois é deste “lugar histórico” que me cabe a tarefa de redigir algumas palavras que apresentem esta mostra com a qual sonhamos diuturnamente ao longo dos últimos dez anos, uma vez que ela representa o terceiro capítulo de um movimento iniciado em 2001 e que se renovou em 2011. Mas, mais do que simplesmente apresentar este trabalho específico, é daqui que sento para tentar me recolocar em outros lugares (de sentimentos, de projetos, de realizações) que são os que marcaram tanto desta última década, e com os quais não condiz simplesmente se deixar levar pelas veredas do desencanto, da desesperança, quando não do desespero, entre tantos destes “des-” que vêm ocupando tanto do nosso cotidiano e das nossas energias vitais nesse específico e atual momento histórico.

Por isso, é preciso lutar contra as sombras e fumaças que parecem tomar nossos olhos nos dias de hoje, e senão exatamente refrescar, pelo menos reavivar as memórias dos dez anos entre 2011-2020, em que coletivamente podemos dizer que o cinema brasileiro viveu seu período de maior ebulição. Isso porque, na primeira parte da década, a consolidação das políticas públicas que começaram a se desenhar na década anterior atinge o seu auge como processo, e com a aprovação da Lei 12485 (a “lei da TV a cabo”) vemos a ferramenta fundamental do Fundo Setorial do Audiovisual atingir montantes inéditos de investimento na cadeia do audiovisual de uma forma ampla, indo da produção à distribuição, passando pelo desenvolvimento com a criação dos inéditos núcleos criativos, e com o aumento da prática da coprodução internacional. No entanto, não apenas se produziu cinema em quantidade inédita: com a chegada dos chamados arranjos regionais à estrutura do fomento público, efetivamente se permitiu que determinados Estados e localidades brasileiras tivessem muitas vezes seus primeiros editais audiovisuais na história, assegurando-se assim que esses números de produção não se limitassem aos mesmos centros produtores e atores econômicos. Se produziu cinema brasileiro literalmente de Norte a Sul e de Leste a Oeste na última década.

No entanto, é preciso ir além dessa dimensão numérica que afirma que se estabeleceu marcos na quantidade de obras realizadas (levando em conta aqui também o barateamento e acessibilidade que a tecnologia digital permitiu mundialmente que alterasse muitas das dinâmicas históricas centralizadoras deste setor), assim como na quantidade de filmes brasileiros em salas de cinema e, inclusive, no número total destas salas em funcionamento no país. Pois não só estes números encontraram uma dimensão inédita na regionalização da produção como se começou a exigir atenção para demandas históricas essenciais, em grande parte silenciadas ao longo de décadas (não só, mas especialmente no cinema), no que tange a participação das mulheres e grupos minoritários dos mais diversos matizes (entre os quais é essencial citar a emergência em quantidades marcantes dos realizadores negros e indígenas) na conceituação e liderança do que seriam um número significativo (mesmo que ainda subdimensionado) de obras, mas também de empresas, ações e eventos do audiovisual brasileiro.

É também por conta deste contexto que, na passagem dos dez anos desde o evento que organizamos acerca do cinema brasileiro dos anos 2000 para este, a estrutura mesmo dessa mostra precisava ser mexida nos alicerces da sua concepção. Foi a partir daí que se impôs a ideia de que essa nova edição trocasse a prática de propor um determinado número de “questões” que fosse enunciadas a partir de um olhar centralizado, mas sim que possibilitasse a emergência de diferentes “olhares” sobre o cinema brasileiro do período, sendo cada um destes proposto por curadores distintos. Entendemos que isso é essencial quando constatamos que justamente uma das marcas da década foi a percepção da importância da incorporação cada vez maior de uma amplitude de perspectivas sobre a criação artística, não só mas especialmente no âmbito do cinema brasileiro.

Para além deste motivo mais amplo, porém, esta redefinição do escopo da iniciativa reconhece também a maneira como as trajetórias de uma série de profissionais dedicados à prática da curadoria e da proposição de verdadeiros universos audiovisuais a partir de seus distintos lugares (aqui entendidos no sentido estrito da amplitude do mapa brasileiro, mas também lugares de gênero, raça, processos formativos e locus de atuação etc.) foi uma das marcas da produção do período. Reconhecemos e reforçamos, dessa forma, que estes múltiplos olhares que já vinham se impondo através de trabalhos em inúmeros festivais, mostras, cineclubes ou outras maneiras de não apenas exibir como agitar o cinema brasileiro, re-pensar este cinema em pleno ato, sentindo seu pulso e destacando filmes, artistas, mas também realidades específicas da produção de conteúdos plurais. Deste amálgama de visões sobre o cinema, estamos seguros que emerge um painel muito mais interessante do que algum que pudesse ser proposto a partir de uma só perspectiva.

No entanto, não é apenas esta decisão (que já estava tomada há alguns anos, enquanto se projetava possíveis caminhos) que altera profundamente esta mostra no contraste com as duas que a antecederam. Em complemento a ela, se incorpora a circunstância atual da circulação de obras dentro do contexto específico da pandemia no qual o evento efetivamente se realiza, e portanto a decisão impositiva da realização dela exclusivamente no formato online. Ao contrário da anterior, esta não foi uma decisão que tomamos exclusivamente com gosto e em reconhecimento a processos importantes em desenvolvimento, pois o espaço da sala de cinema ainda representa para muitos (e certamente para mim que assino este texto) o espaço desejado da fruição das obras e, mais ainda, dos encontros presenciais e físicos entre espectadores, realizadores, curadores, obras. Mais do que uma questão de preferência individual por modos de consumo e fruição, porém, a utilização do formato online também nos obriga a alterar decisões ou caminhos curatoriais por percebermos que, seja no sentido bem prático (o fato de que muitas obras do período exibido possuem contratos de exclusividade para exploração online com determinadas plataformas), seja no sentido mais amplo de pensar o que significa disponibilizar algumas obras para acesso em casa nos formatos de visualização e de concorrência de atenção que o caracterizam.

Mas é óbvio que exibir online também nos parece uma maneira fascinante e promissora de fazer com que alguns filmes brasileiros de curta e longa-metragem possam atingir um público que, de outra maneira, talvez não pudesse ir até uma determinada sala numa cidade específica. E entendemos que isso é um ato importante quando pensamos que alguns desses filmes que exibimos aqui tiveram circulação bastante limitada principalmente quando do seu eventual lançamento comercial (que inclusive vários nunca tiveram, e não só no caso dos curtas) ou mesmo nos seus trajetos por festivais e mostras. Para além deste dado será precioso não só partilhar nossos debates com espectadores de todo o país (algo que já havíamos feito, porém, na mostra de 2011, ao deixarmos os debates disponíveis em gravações e transcrições no site da mostra), como principalmente contar com a presença nas mesas de nomes de várias regiões, algo aí sim muito mais limitado nas nossas edições presenciais em Rio e São Paulo.

Pois bem, será desta maneira que CINEMA BRASILEIRO: ANOS 2010, 10 OLHARES buscará constituir a terceira parte de um movimento que temos feito desde o ano de 2001 (referente ao cinema dos anos 90) e 2011 (os anos 2000): o de tentar se aproximar de uma produção múltipla ainda no calor da hora em que ela fecha dez anos, sem maior recuo histórico para sua inserção numa linha mais longa. Buscamos marcar essa passagem de tempo com um claro objetivo que sempre é muito menos de canonizar ou resumir um cinema tão múltiplo (e cada vez mais, no caminho que atravessa essas três décadas) e mais de refletir sobre determinadas linhas de força presentes nessa produção. Torcemos que assim logremos permitir, inclusive, muitas vezes associá-la não só ao que veio antes como, talvez, conseguir a partir dela olhar e vislumbrar rabiscos para um futuro.

Entendemos, por fim, que este gesto ganha uma dimensão política maior por chegar ao olhar do público num momento tão delicado, como afirmamos no começo deste texto. Para além de um país literalmente sangrando perdas enormes, este é também o momento em que se instaura um combate frontal do atual governo federal frente a algumas das instituições e artistas que compuseram e compõem toda uma rede viabilizadora e disponibilizadora do cinema nacional. Acreditamos, então, que, neste contexto, a possibilidade de ver, conhecer, discutir e repensar 43 longas e 28 curtas produzidos ao longo dos últimos dez anos possa servir também como uma resposta firme e ruidosa acerca da vitalidade, relevância e força mobilizadora do cinema do Brasil. E não podemos nunca deixar de torcer e lutar para que, daqui dez anos, possamos estar redesenhando este gesto olhando para essa década que mal se abre e reconhecendo nela uma vitória da criação e da vida frente o arbítrio e a morte.

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