“Só as coisas rasteiras me celestam”
Manoel de Barros.[1]
Num ensaio recente sobre a obra de Wong Kar Way publicado no site da Criterion Collection o crítico estadunidense John Powers diz: “embora o cinema possa ser edificante, a maioria de nós vai ao cinema para nos libertar de nossas vidas diárias e ser transportados para um mundo mais rico, mais encantador e mais vibrante do que o nosso.”[2] De fato, quem nunca foi ao cinema ou mergulhou em um filme para escapar do cotidiano, para fugir do vivido no dia a dia? Mas, e se, ao invés de fuga, invertermos a direção desse caminho e o cinema for ao encontro do cotidiano? A questão é que para boa parte da plateia que frequenta, ou frequentava as salas de cinema no Brasil num mundo pré-pandemia, ver o vivido no cotidiano é uma experiência da ordem do familiar. Porém, aquilo que é uma espécie de reencontro para aqueles que historicamente se veem no cinema, vibra ainda como novidade para quem só muito recentemente passou a ocupar com centralidade das telas do cinema nacional.
Pois, fato é que na última década o cenário da produção de filmes brasileiros presenciou não só a emergência de outros sujeites contando suas histórias, como também de outras curadores e curadores articulando propostas que mostram essas histórias. Nesses deslocamentos de significados entre centros e margens que essa emergência propicia, assistimos obras que rompem, de formas diversas, com expectativas de representações já cristalizadas culturalmente em nosso imaginário. São filmes que exploram outros repertórios de imagens, outras paisagens, consolidando outras possibilidades de presença no cinema.
Minhas práticas curatoriais quase sempre estiveram relacionadas a essas experiências cinematográficas, e investidas do desejo de colaborar para que esses filmes encontrassem cada vez mais uma quantidade maior de plateias, dentro e fora do país. Assim, ao atender o convite para participar da mostra Cinema Brasileiro: anos 2010, 10 Olhares, o caminho não poderia ser diferente deste: propor uma programação que fizesse confluir as trajetórias dos filmes da década com trabalho que tenho desenvolvido em diferentes contextos, seja em festivais e mostras, ou em eventos independentes.
A inspiração do programa Cotidiano Singular está numa sessão de curtas metragens que montei para o International Film Festival Rotterdam (IFFR) em 2019, no contexto da mostra Soul in the eye: Zózimo Bulbul’s Legacy and the Contemporary Black Brazilian Cinema[3]. Na sessão chamada de “Ordinariamente e negro” pela primeira vez articulei filmes atravessados de diferentes maneiras pelo cotidiano, não necessariamente como tema, mas definitivamente como tom, ritmo, fluxo. Na base das escolhas de então, a já mencionada percepção de que ainda que cotidiano seja algo que todo mundo tenha, o privilégio de vê-lo no cinema em sua “ordinariedade”, sem ênfase de excepcionalidade ou violência, pertenceu só àqueles grupos historicamente hegemônicos.[4]
Experimentada outra vez em 2019, como enquadramento para uma retrospectiva inédita da obra do cineasta estadunidenses Kevin Jerome Everson durante o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, “Ordinariamente e negro” confirmou a potencialidade da dimensão dos cotidianos como chave para pensar e sentir as imagens para além das questões de representação, desviando do quadro já conhecido de estereótipos e apagamentos. Reiterando que há fantasia e também poesia, a celestialidade apontada pelos versos do poeta mato-grossense Manoel de Barros usados na epígrafe, no encontro através do cinema com o vivido diariamente por pessoas cujas posicionalidades de raça, gênero e classe não pertencem a um circuito hegemônico.
Mais ainda, presenciar nas imagens em movimento a poesia do vivido no dia a dia, pode configurar um gesto revolucionário para aqueles cuja centralidade nas narrativas nunca foi costume no cinema. Um modo de presença de maneiras não estigmatizadas por traços de violências, opressões e exclusões, ou ainda em registros exclusivamente sociológicos que, por vezes, ressoam inatos aos imaginários, quase como constitutivos de certas realidades. Nesse sentido, os cotidianos funcionam como chaves que libertam tais grupos das “marcas do plural” de que nos fala o ensaísta tunisiano Albert Memmi, ao falar das características impostas dos povos colonizados no mundo. Ou seja, os gestos individuais não equivalem ou respondem pelo todo. O cotidiano, portanto, como caminho possível também para aliviar o “fardo da representação”[5] para citar aqui Kobena Mercer.
As dimensões de cotidianidade dos filmes podem ser vistas como possibilidade de liberdade da obrigação de representar uma comunidade, um grupo, uma realidade. Mas não só. É também na ordem do cotidiano que podemos perceber as singularidades irredutíveis de pessoas, grupos ou culturas, aquelas que Édouard Glissant defende com a ideia de opacidade, e que está na base de Poéticas da relação. Aparentemente paradoxal, é no ordinário que também reside o singular, o idiossincrático no modo que cada uma/um tem de existir sem pretender ou ressoar com a universalidade, muito pelo contrário.[6] Forma de ruptura pela proximidade, o cotidiano é um caminho outro no acesso da liberdade das epistemologias eurocêntricas. Uma via mais silenciosa que manifestos ou declarações explícitas contra violências e traumas, mas não por isso menos eficaz no abandono dos paradigmas de verossimilhança e transparência que regem esse modo de conhecer as coisas do mundo. Assim, Cotidiano Singular traz em sua proposta um conjunto de filmes que dialogam com os cotidianos da vida naquilo que têm tem de único, mas afetivamente e intimamente comum.
Sim, os afetos e a intimidade, outros dois elementos também presentes na potência, por vezes ignorada, do cotidiano. “As questões mais ingênuas escondem, muito frequentemente, todos os seus recursos para provar a real complexidade das coisas”, já disse Didi-Huberman (2015, p. 205). Tal como em todos os detalhes da trajetória do casal Zezé e Norberto em Ela Volta na Quinta, de André Novais Oliveira. São muitas as análises feitas sobre esse filme que falam de como a intimidade da família real, e mantenho aqui o dupli sentido da expressão, de André, Renato, Zezé e Norberto, se transpõe para a história da família do filme. A proximidade que parece borrar as linhas que dividem filme e vida, reiteram o direito à ficção, como fala Carol Almeida, cujo olhar também integra essa mostra[7], e geram uma espécie de acolhimento que, para mim, é uma das experiências mais potentes quando pensamos em filmes e curadorias como gestos de cuidado. O alívio de uma espectatorialidade que prescinde da criação constante de um espaço de agência, um olhar opositor que precisa filtrar os apagamentos e os traumas, para poder ser no cinema, isto porque eles estão presentes já nos próprios filmes[8].
Por exemplo, Ela Volta na Quinta, assim como Temporada segundo longa do diretor, traduz essa experiência que a gente fala brincando, mas com fundo de muita verdade, na expressão “querer morar num filme”. É a vontade de ficar na cama conversando com Zezé, de ficar na sala dançando com ela e Norberto, de se apertar no sofá naquele clima de domingo, assistindo futebol, ou mesmo de ficar cantarolando Paulinho da Viola em looping (o que aliás acontece comigo por dias sempre que revejo Ela Volta na Quinta). É uma vontade de ficar, de permanecer no filme e com o filme, um estar à vontade que pode se estender para o desejo de estar no cinema, nesses cinemas. De ficar, por exemplo, com Gabriel Martins em Movimento, com as crianças do coletivo de cinema Mbyá-Guarani em No Caminho com Mário, com Lincoln Péricles em Um Filme de Domingo e também com Glenda Nicácio e Ary Rosa em Café com Canela. Nos fazendo voltar sempre a Didi-Huberman e seu alerta para não subestimar a complexidade do que se apresenta aparentemente como simples, seja na forma ou no conteúdo. Há muito o que se ver e pensar no movimento dos copos de cerveja que a câmera acompanha em Café com Canela ou na dança no quintal de Gabriel com Tereza ou nas brincadeiras seja caminhando, seja na lanhou-se, seja trabalhando de Mário e seus amigos.
Mas nem só de acolhimentos são feitos os espaços de agência para espectatorialidade que os cotidianos proporcionam. Podem ser também permeados de tensões e cansaços, como na rotina de trabalhadores que exaustivamente combatem um fogo que destrói, mas também regenera no filme do antropólogo Guilherme Fagundes Outro Fogo; ou nos conflitos, desencontros e reencontros de relações intergeracionais das mulheres da família de Letícia Simões em Casa. São permeados também por uma certa quietude, como na vida de Cristiano, um trabalhador cuja vida solitária se passa em uma forma de silêncio, que tem sua voz ouvida indiretamente através de leitura que André faz de seu caderno de memórias em Arábia, filme de Affonso Uchoa e João Dumans, e que a partir daí “um mundo se abre”, para citar os próprios diretores em uma entrevista para a revista Film Comment.[9] Silêncio e quietude, aliás, integram essa dimensão em que as cotidianidades encontram modos de resistência em suas formas de expressão em público, como apontam as reflexões de Kevin Quashie (2009).
Enfim, são esses filmes, mas poderiam ser tantos outros, muitos que inclusive integram as seleções de outros dos olhares da mostra Cinema Brasileiro: anos 2010. Filmes como Bicicletas de Nhanderú e Travessia no olhar do Cachoeira Doc; Tava, a Casa de Pedra do olhar de Rafael Parrode; Yãmîyhex: As Mulheres-Espírito no olhar de Kênia Freitas; Quebramar no olhar de Carol Almeida; Um Filme de Verão no olhar de Cleber Eduardo; ou Vamos Fazer um Brinde no Olhar de Heitor Augusto, apenas para mencionar algumas das muitas possibilidades de encontro com cotidianos singulares que por aqui se avizinham.
E com a ideia de avizinhamento, que uso aqui a partir do aprendizado recente que a proposta curatorial de Tatiana Carvalho Costa, Vanessa Santos e Natalie Matos para I Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte me proporcionou, me encaminho para o fim desse texto refletindo sobre fazer curadoria e programar filmes para serem vistos online[10]. Essa “lógica semântica da vizinhança” para pensar o agrupamento dos filmes, empregada por Natalie, Vanessa e Tatiana dialoga com a realidade inegável e desafiadora de que a espectatorialidade para mostras de cinema virtuais não é a mesma, e que, portanto, precisamos pensar caminhos para que a proposta curatorial faça sentido (ou não se perca) mesmo que os filmes não sejam assistidos numa ordem determinada por quem programa, tal como acontece nas projeções presenciais. De minha parte, ainda que ao escolher os filmes não tenha me furtado de pensar uma ordem para a programação em sessões (não vou negar), que seria Ela Volta na Quinta, Arábia, Casa, Café com Canela, e a sessão de curtas: Outro Fogo, No Caminho com Mário, Filme de Domingo e Movimento, a aposta do programa é que, por qualquer começo ou sequência, as experiências proporcionadas pelos cotidianos singulares dos filmes possam ser percebidas. Por todo lugar, caminhos possíveis.
Enfim, parafraseando a cena final de Casa, “e agora? Faz o que com esse texto?” Seguindo exemplo de Letícia Simões, ponho ponto final e termino aqui. Mas as conversas e os filmes seguem, cotidianamente, espero.
Bons filmes e boas sessões a todes.
Referências:
DIDI-HUBERMAN, Georges. Devolver uma imagem. In Emmanuel Alloa (org). Pensar a imagem. Rio de Janeiro: Autêntica, 2015, pp. 205-225.
EVEROD QUASHIE, Kevin. “The Trouble with Publicness: Toward a Theory of Black Quiet” African American Review, Vol. 43, No. 2/3 (Summer/Fall 2009), pp. 329-343
GLISSANT, Édouard. Poetics of Relation. Michigan: The University of Michigan Press, 2019.
HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. Trad. Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019, p.217
MERCER, Kobena. “Black art and the burden of representation”, Third Text, 4:10, 1990, pp.61-78
MEMMI, Albert. O retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador. Editora Lavoiento, 2016.
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[1] Manoel de Barros, Livro sobre o Nada, p. 41.
[2]O ensaio foi publicado a propósito do lançamento da caixa com 7 discos blu-ray com filmes de Kar Wai. “World of Wong Kar Wai: Like the Most Beautiful Times” Disponível em
https://www.criterion.com/current/posts/7330-world-of-wong-kar-wai-like-the-most-beautiful-times
[3] Para mais detalhes sobre a mostra ver: https://iffr.com/en/blog/soul-in-the-eye
[4] Integravam a sessão os filmes: Dia de Jerusa (2014) de Viviane Ferreira, O Som do Silêncio (2019) de David Aynã, Peripatético (2017) de Jéssica Queiróz e Nada (2017) de Gabriel Martins. Temporada (2018) de André Novais que também fazia parte do programa da Soul in the eye é um filme que também entra nesse eixo curatorial, e ainda que não tenha sido exibido junto com os curtas.
[5] “Artists positioned in the margins of the institutional spaces of cultural production are burdened with the impossible role of speaking as 'representatives' in the sense that they are expected to 'speak for' the black communities from which they come.” (Mercer, 1990, p. 62)
[6]Lembro aqui do momento em que Glissant explica a sua própria opacidade com o fato de não gostar de comer brócolis no documentário de Manthia Diawarra, “Édouard Glissant: One world in relation” de 2009.
[7]“A história da vida privada dessa família é também a história do direito à ficção, da memória marcadamente inventada, de poder usar as construções simbólicas da realidade para desafiar a ideia de que existe, de fato, alguma realidade”. In https://foradequadro.com/2014/09/24/ela-volta-na-quinta-de-andre-novais/#more-448
[8] A ideia de espaço de agência é mobilizada por bell hooks como uma estratégia que integra o olhar opositor. Diz hooks: “Existem espaços de agência para pessoas negras, onde podemos mesmos ao mesmo tempo interrogar o olhar do Outro e também olhar de volta, um para o outro, dando o nome ao que vemos. O “olhar” tem sido e permanece, globalmente, um lugar de resistência para o povo negro colonizado. Subordinados nas relações de poder aprendem pela experiência que existe um olhar crítico, aquele que olha para registrar, aquele que é opositor. Na luta pela resistência, o poder do dominado de afirmar uma agência ao reivindicar e cultivar “consciência” politiza as relações de “olhar” - a pessoa aprende a olhar de certo modo como forma de resistência. (...) Foi o olhar negro opositor que reagiu a essas relações de olhar criando o cinema negro independente”. (hooks, 2019, p.217)
[9] “(...) normalmente, você veria esse trabalhador por cinco minutos e então sua vida continuaria. Mas aqui, por acaso, você cai nesta vida e quando você vai fundo nela, você vê que ela não tem fundo. Todas essas pessoas que vemos em nosso dia a dia parecem muito sem importância ou comuns, mas se você entrar, um mundo inteiro se abrirá.” Interview: João Dumans and Affonso Uchoa por Nicholas Elliot. In https://www.filmcomment.com/blog/interview-joao-dumans-affonso-uchoa/
[10] Ver “Cinema Negro Brasileiro Contemporâneo Online: e agora?” Catálogo da I Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte, disponível em https://semanadecinemanegro.com.br/catalogo