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Cléber Eduardo

Espaços concretos de vidas em cinema

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Cada um dos quatro longas e quatro curtas do segmento da programação Espaços Concretos de Vidas em Cinema foi visto por mim em um momento da última década. Nunca foram vistos ou revistos como parte de um mesmo conjunto e, embora suas escolhas tenham sido orientadas por serem como são em suas especificidades, o agrupamento estimula conexões a partir da heterogeneidade. Todos evidenciam em suas operações traços marcantes do período abordado, cujas gêneses são localizáveis em décadas anteriores, desde os anos 50, com atualizações brasileiras a partir de Serras da Desordem (Andrea Tonacci, 2006) por uma via e de O Céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006) por outra. São oito filmes importantes para melhor compreender o espírito de realismo inventivo e processual dos últimos 15 anos, mas superam a importância das recorrências com variáveis para se afirmarem por suas forças, seus momentos e seus movimentos – conceitos e categorias à parte. São exatamente oito por uma questão logística da mostra, mas poderiam ser um pouco mais, com mais abertura para as diferenças a partir de uma premissa tênue e situada entre a traição e a tradição dos realismos.

Há uma parte do cinema brasileiro dessa década e meia que tensionou as relações com as realidades anteriores aos filmes e, vista ou não como “documental”, trafegou pelos materiais das vivências pessoais e sociais, sem ter com elas uma atitude de perícia fenomenológica, mas sim de interação criadora. A aliança e traição na relação com as matrizes e tradições dos diversos realismos de cinema e com os dogmas observacionais dos anos 60 podem ser vistas como um arco amplo e cheio de particularidades, assumindo com menos ou mais consciência um pertencimento a esse universo de abordagens e renovando as bases das matrizes estéticas modernas. São identificáveis essas marcas fundadoras também em trabalhos não programados para esse recorte, como A Cidade É uma Só (Adirley Queirós, 2011); Esse Amor que nos Consome (Alan Ribeiro, 2012); o curta Jairboris (Lincoln Péricles, 2014); Ela Volta na Quinta (André Novaes, 2014); Branco Sai, Preto Fica (Queirós, 2014); e Ontem Havia Algo Estranho no Céu (Bruno Risas, 2020), por exemplo. Essas obras mencionadas e as oito programadas, assim como outras não mencionadas ou presentes em outros segmentos da mostra, são regidas por um realismo explicitado principalmente nos espaços concretos, delineados e às vezes delimitados das vivências em quadro. Os espaços não são cenários ou paisagens, sequer iconografia de classe (como é mais comum), mas extensões e modulações das pessoas e situações.

Os realismos estão entre nós, mas falar de realismos, a essa altura do cinema, parece atitude de cinemateca. Prefere-se, já faz algum tempo, tratar do documental, mas por um viés não tão restrito ao documental. Talvez, entre outras razões, porque para se apropriar do realismo como termo maleável e, ao mesmo tempo, matriz de muitas práticas cinematográficas nominadas com outros termos para lidar com filmes contemporâneos é esperado autenticação em cartório da bibliografia/filmografia e a benção de Roberto Rossellini. Os oito filmes não se filiam – ou pouco se filiam – à uma tradição realista (dos anos 30 aos 60): nem se filiam a um realismo fenomenológico, revelador e descritivo, atrelado à metafisica existencialista de André Bazin; nem se vinculam a um realismo interpretativo e materialista, mais constatador dos sofrimentos individuais e coletivos, que tem como uma das matrizes o italiano Umberto Barbaro e de modo mais amplo o húngaro Georg Lukács.

Um realismo, em primeiro lugar, dos espaços, nos oito casos. De diferentes maneiras, espaços entranhados em personagens, não de uma semântica social: os filmes se passam em algum lugar definido, com os corpos pertencentes a esses lugares, mas, ao mesmo tempo, são jogos cênicos e narrativos entre essas autenticidades da presença e a elaboração cinematográfica. Não são um mesmo filme, com uma mesma questão central, que se repete como mantra. Está no ruído, mais que na rima, a força desse grupo. É presumível a dissonância entre um ou outro se submetidos à uma justaposição, mas há em todos essa aproximação entre vidas no cinema e fora dele, entre espaço filmado e espaço vivido, porém com espaço garantido para a criação. Os oito também agem de modos distintos em relação às violências variadas, nem sempre em quadro, mas sólidas suficiente para pressionar as vidas em cena.

Há emprego de personagem relatando para a câmera sobre contexto de vida de outra personagem (Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides), há diretor se submetendo a seu personagem em um jogo de poderes eróticos e de cinema (Filme para um Poeta Cego), há performance corporal e verbal como modo de expressão de um espaço geográfico e social no limiar do visível (A Vizinhança do Tigre), há flerte com a ficção científica distópica e futurista como estratégia realista de se comentar com ênfase o estado atual e histórico dos governos racistas-policiais-exterminadores do país (Chico), há transparência observacional baseada na continuidade das cenas e só eventualmente quebrada pela forma do filme (Estado Itinerante, Baronesa, Diz a Ela que Me viu Chorar), há trânsitos entre materiais da direção e das pessoas nas imagens heterogêneas do filme e uma estratégia de se aproximar de temas representativos sem lidar com as intenções das representações de grupos de jovens em favelas cariocas (Um Filme de Verão). E há autoconsciência geral de haver um filme a fazer e decisões a tomar.

A programação ao longo do percurso da década tem seu primeiro capítulo em 2011 com o curta-metragem mineiro Dona Sônia Pediu uma Arma para Seu Vizinho Alcides, de Gabriel Martins, que tensiona a autenticidade dos espaços com a presença nada natural da protagonista sem diálogos. Há uma dissonância evidente: os artifícios são explícitos por dentro do retrato social sugerido pelo caso individual, sem com isso assumir uma representação de segmento de sociedade na periferia. Há desde o personagem comentarista que contextualiza a vida de Dona Sônia, falando de seu desejo de vingança e assumindo sinais de distanciamento cênico, até a moldura visual na qual a protagonista é colocada, quase sempre imóvel ou com mínimos gestos (lavando a louça), como se fossem ecos visuais de Material Bruto (2006) e Permanência (2010), dois curtas do também mineiro Ricardo Alves Junior, que também unem autenticidade do espaço com estilo formalista.

Dona Sônia é do ano seguinte a Avenida Brasília Formosa (Gabriel Mascaro, 2010) e do mesmo ano de A Cidade É uma Só (Adirley Queirós, 2011) e de O Céu Sobre os Ombros (Sergio Borges, 2011), filmes pertencentes por outros caminhos a esse realismo reformado, muito diferentes entre si e em relação ao curta mineiro, especialmente por não promoverem interferências cênicas e narrativas em suas premissas realistas, mas também concentradas nas relações de personagens com seus espaços de residência e vivência (Recife, Ceilândia, Belo Horizonte). Talvez essa seja umas das marcas distintivas de cada filme: a que ponto e como revelam sinais de sua construção e dos apagamentos da criação? Há exemplos das duas escolhas formais. Na direção das interferências, sempre a chamar atenção para a realização de um filme, há um curta-metragem paulista do ano seguinte, Filme para um Poeta Cego (Gustavo Vinagre, 2012), no qual diretor e personagem, Glauco Matoso, entram em um jogo erótico/cênico de dominação e consentimento, de experiência em ato e performance consciente, de controle e de descontrole, fazendo do apartamento do poeta um templo de ritual artístico e de memória de outros rituais.

Há ainda o espaço para uma auto-reflexividade desconstrutiva em relação à crença ilusionista na imagem, com ecos das desconfianças em relação ao documentário (re)semeadas poucos anos antes por Jogo de Cena (Eduardo Coutinho, 2007) e Santiago (João Moreira Sales,2007), embora com outros materiais, disposições e alcances. Filme para um Poeta Cego é o filme de ambientação destoante em relação aos universos periféricos ou marginais, com um personagem que é culto e artista, além de desprovido de visão, em nada próximo das vivências dos outros filmes – embora o sofrimento também faça parte de sua condição e, em certa medida, haja de largada uma vítima social com possibilidade de vingança, submetendo seus parceiros a domínios consentidos sobre seus corpos.

As coisas mudam amplamente nessa linha de tempo dois anos depois. O mineiro A Vizinhança do Tigre (Afonso Uchôa, 2014), exibido pela primeira vez no mesmo ano, mês e semana que Branco Sai, Preto Fica e o curta Jairboris, torna-se um paradigma estético. Poucos filmes da década levaram tão a sério e ao cabo uma estrutura rítmica e cênica baseada em células e não no organismo ou esqueleto fílmico como um todo. Essa foi uma tônica progressiva nos curtas e em muitos longas de novos olhares na direção. Importa mais a intensidade e condensação dos momentos físicos e verbais entre os adolescentes periféricos em quadro do que a representação do ambiente pela tipologia social. Vemos o particular isolado de suas violências estetizadas em jogos e brincadeiras expressivas de forças não visíveis nos limites da imagem, mas mencionadas e percebidas pelo visível e pelas palavras, pelas atitudes e decisões, recusando a sintomatologia e a estratégia de tomar as partes pelo todo. O que se vive no filme é o que se vive na vida? Essa operação de contraprova fidedigna na relação entre vida e cinema é deixada de vez para escanteio, de modo a repropor modos de lidar com as situações do mundo histórico e cotidiano, sem apaziguar ou maquiar as dores, as feridas e as dificuldades, porém, sem também fazer disso equação aritmética.

É notório como há dados de vida e sinais de formas de criação em Vizinhança, sem as marcas auto-reflexivas dos curtas já abordados no texto, mas não sem senso de performatividade consciente de sua energia. Se a vivência periférica e dura se mantém em foco, as energias fílmicas são outras no curta-metragem também mineiro Estado Itinerante (Ana Carolina Soares, 2016), com a eletricidade mais contida em seus planos-cenas de poucas palavras e de espessa duração, injetando volume e densidade nas experiências da protagonista, uma jovem cobradora de ônibus a lidar com os encontros sensíveis e efêmeros com outras mulheres e com as violências masculinas do dia a dia na vida. É um filme de externas, sobretudo, de imagens na rua, em bares. Ana Carolina Soares opta por um naturalismo sóbrio no retrato de suas tensões e afetos, com diálogo antes de tudo com André Novais Oliveira em Ela Volta na Quinta (2014). Talvez seja o filme mais narrativo da programação, mais marcado por uma progressão linear do tempo na sucessão das situações expostas, com uma atriz ciente de seu dever de interpretação, embora fundida à vivência de sua protagonista.

No ano seguinte, Baronesa (Juliana Antunes, 2017), parece cruzar os caminhos de Vizinhança e de Estado Itinerante, acompanhando situações na vida de duas jovens mulheres em uma favela, sem tomar o particular pelo panorama. Não há a mesma intensidade física e verbal de Vizinhança, sequer os interditos estruturantes de Estado Itinerante, mas, como em Vizinhança, a estrutura é por células que se somam umas às outras, sem estarem em uma cadeia semântica e dramática com senso de progressão; e, como em Estado Itinerante, há um pacto com a calma cênica no estabelecimento do olhar sobre as situações filmadas. Esses três filmes mineiros valem-se também, como outros da programação, de presenças ou interpretações ao mesmo tempo ricas e econômicas, com variações de descarga elétrica, mas força de presença.

Que quatro dos oito filmes sejam de Minas Gerais, se não é atestado de superioridade estética dos filmes mineiros no período (somados a Ela Volta na Quinta e a O Céu Sobre os Ombros), é algo a ser considerado ao menos nesse segmento. Há na produção local uma atração forte por essas zonas de novos realismos inventivos e reformados. Que sete dos oito se passem em ambientes de periferia ou favelas também é algo importante nessa polaroide reflexiva. Que recusem contextualizações e informações sobre os espaços e as vidas – Chico, como Branco Sai, Preto Fica, recusa menos – não é menos irrelevante que as outras características de conjunto. Há uma negação da representação social pela média ou por extensão. É um cinema de sugestão e de compressão, com o fora comprimindo o dentro, mas não de explicação de mundos, de instrução sobre certas margens, de compartilhamento de pesquisa informativa. São outras as pesquisas empreendidas, certamente mais pessoais.

De Minas para o Rio, para um morro do Rio. O curta-metragem carioca Chico, dos Irmãos Carvalho, é documental em seu futurismo. Tudo se passa em um casarão em uma favela, ponto de organização da resistência popular contra o totalitarismo policial, onde uma criança vive a véspera de seu aniversário entre a avó doce e a mãe guerreira. Os ambientes aparentam ser tão realistas quanto construídos: é quase uma síntese da noção de espaços concretos de vidas em cinema. Os planos têm a densidade temporal e a espessura cênica de Estado Itinerante, com a câmera sendo operada tanto com agilidade quanto com atenção concentrada. A ficção futurista segue os passos de Branco Sai, Preto Fica e, como nesse, há maior investimento na noção de representação alegórica e ao mesmo tempo direta dos conflitos entre centros brancos de poder e periferias negras. Se o desfecho é antes uma metáfora, com a criança em uma pipa como Cristo na cruz, com sua mãe tentando empiná-la com uma corrente, não é simbolismo liso ou consensual, antes primando pelo desconcerto de sua aparição.

Como no final de Chico, há linhas de fuga e salvação em outros três filmes (A Vizinhança do Tigre, Baronesa e Estado Itinerante), com personagens saindo de seus ambientes menos porque há horizonte à vista para tentar ser alcançado, mais porque um dos gestos da sobrevivência é a fuga e o deslocamento, sinal de incapacidade das individualidades lidarem com um sistema de forças grande demais para ser enfrentado. Mais que no acerto de contas, como em Branco Sai, Preto Fica e Dona Sônia, investe-se na resistência. As fugas e os deslocamentos foram uma constante no cinema brasileiro desde a segunda metade dos anos 90 até meados dos anos 00. São outras as contingências e são outras as proposições entre 2011/2020, mas permanecemos com esse dado fundamental em nossos desfechos ou pontos de partidas de personagens. É preciso, em certo momento, suspender o pacto e ir respirar o ar de outras bandas.

Os dois longas mais recentes, o paulista Diz a Ela Que Me Viu Chorar (Maira Bühler, 2019) e o carioca Um Filme de Verão (Jô Serfaty, 2019), aproximam-se por vias próprias dos outros dois longas (Vizinhança e Baronesa). As experiências particulares e de afeto também estão acima da intenção representativa de seus ambientes (um prédio habitado por dependentes químicos no primeiro e uma favela onde moram três adolescentes de férias no segundo). Também são filmes de células e estações, não de estradas. Não sabemos nada além do que aparece e se diz nas cenas. Não se busca nada além de aproximação com personagens, frutos de um amplo processo de imersão com o espaço social e com os seres dali (comum a todos os longas da programação). Dois filmes, ainda assim, em quase tudo distintos.

Diz a Ela que Me Viu Chorar é uma sucessão de situações de convivência entre pessoas atoladas em uma vida de limitações e dotadas de uma complexidade emocional cujo adensamento é possibilitado pela proximidade incômoda do filme com os corpos nos cômodos. Há uma estratégia de observação minuciosa de como cada corpo existe naqueles momentos, sem transformar a dependência química em tema, dramaturgia ou agente de uma derrocada existencial. Nem toda sensibilidade topa. Nem toda ética admite. É um limite aparentemente perigoso, mas enfrentado com sóbria dureza. Não está tão distante das armadilhas em momentos de Baronesa e A Vizinhança do Tigre.

São menos perigosas as aproximações de Um Filme de Verão com três adolescentes, sem pretender ser sobre a adolescência em favela, mas sobre e com os três adolescentes, com seus próprios paradoxos e questões pessoais, sem que isso, para o filme, seja um atalho para a representação de um coletivo. Pelo contrário. Nada que soe típico, síntese ou representativo é admitido. Essa é, ao menos em parte, a tônica dominante desses diferentes realismos contemporâneos. Nenhuma imagem tem a intenção de ser exemplar ou um resumo esquemático do funcionamento social das periferias e favelas.

Personagens com nomes de suas vidas fora dos filmes, aparecendo em suas casas e em seus espaços cotidianos, experimentando na pele e na percepção uma existência de potências nas carências, compondo para a câmera versões de si e de suas vidas, sem perderem a noção de estarem em um filme, são pontos a serem considerados em parte grande desse conjunto. Assim como as relações de distância e de proximidade entre quem dirige e quem está diante da câmera, entre pessoas de mesmas e diferentes cores de peles, com a direção ao mesmo tempo seguindo estratégias de encurtamento da distância, mas sem nem sempre pertencer ao mundo filmado. Existe relação e criação. Esse é o objetivo do jogo e também sua estratégia, a razão dos encontros, a gênese de tudo a ser visto, sem citar Jean Louis Commoli. Havendo cinema, há relação. E limites não decretados de antemão. A que distância filmar? Até onde mostrar? O que pode e o que é impostura? (sem citar Jacques Rivette)

Não quero reproduzir alguns termos redutores e repetitivos da primeira década do século e do começo da segunda (ainda entre nós em 2021), que agiram mais como selos e slogans dispersivos do que como sínteses ou categorias aglutinadoras (como hibridismo, fronteira, fusão, auto-encenação, performance de si, fabulação do real), sempre suavizando a dicotomia entre documentário e ficção sem deixar de mantê-la como referência de base. Proponho a ultrapassagem – outro termo movediço – dessas bases sólidas.  Por isso, atribuí ao grupo um nome sem dever de conceito (Espaços Concretos de Vidas em Cinema). Se não são os termos ideais (porque, em linguagem, ideal é mito), são justos com minha percepção. O que os uniu, em primeiro lugar, foi o impacto da recepção (para mim): a primeira visão de cada um deles colocou-os em lugares muito especiais na década, não somente pelo que mobilizam da tradição agora desviante e inventiva em relação à matriz realista, mas também ou principalmente porque encontram energia, intensidade e vida cinematográfica a partir de seus jogos, quando, em parte de outras tentativas nessas direções, não se sai das premissas conceituais ou, em outra parte, os filmes se jogam na vida sem a consciência da mediação, de serem filmes, de haver cinema a fazer.

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