Não é raro que, de quando em quando, narrativas críticas anunciem a obra, cânone máximo de seu tempo, que cortará a história, erguendo-se como um divisor de águas. Uma inevitável provisoriedade ronda, no entanto, tal anúncio, uma vez que um divisor de águas, do mesmo jeito que o acidente geográfico que o sustenta como metáfora, é um corte instável, parcial, temporário. Uma montanha é um divisor de águas. Mas as águas divididas aos pés de um monte, por contornos e caminhos esquivos, voltam a se encontrar adiante, para desaguar ainda mais além, num colo de mar. E Mar não tem fronteiras, diz-se. O movimento observado no traçado desenhado por estes filmes antes de divisor é desaguar: confluência contra fronteiras erguidas por invasões e expropriações – de terras, corpos, povos, vidas, imaginários –; fronteiras fincadas em nome de um Brasil por cima de todos. É, portanto, de um cinema contra a Nação, e não de um cinema nacional, que tratamos aqui, através dessa pequena coleção de filmes documentais surgidos nesta última década, e reunidos por fluxos sutis de conexão. Se o documentário é o cinema que toma para si a tarefa de empurrar as fronteiras do visível, estes longas e curtas lançam-se nas geografias - do tempo e do espaço -, em operações de retomada: do próprio corpo e desejo, das cidades, das imagens, da história e da terra.
É justamente pelo esbulho da terra e o extermínio dos povos indígenas por onde podemos começar nossa travessia. Em 2009, na dobra desta década, Vincent Carelli lança Corumbiara, que ao lado de Martírio (2016) forma uma trilogia, ainda no aguardo da finalização de seu último capítulo. Corumbiara encontra impulso inicial na urgência em registrar as evidências de um massacre de índios. Vinte anos se passaram entre o lançamento do longa e suas primeiras filmagens, realizadas com intuito de gerar imagens como garantia de vida para aqueles que sobreviveram ao extermínio, a partir da crença na força jurídica de seu caráter referencial. Mas é, finalmente, a instabilidade das imagens como operadores de justiça e a dificuldade em viabilizar a punição dos assassinos dos índios que mobilizam Corumbiara. Há no filme uma luta entre provas e farsas, e, consequentemente, uma dinâmica entre crença e descrença em torno das imagens, que instala o cinema em um domínio de disputas - pelas imagens, pelo imaginário e pela história – coextensivo ao conflito territorial.
E é no filme seguinte, Martírio, que Vincent Carelli leva o movimento inaugurado em Corumbiara ainda mais além, ao narrar com os Guarani-Kaiowá, lado a lado dos índios, o processo obstinado de retomada de terras desse povo, reconhecido pela sua força de resistência pacífica a uma histórica maquinaria de violências – que reúne interesses e práticas as mais espúrias de ruralistas e empresários em perversas alianças com representantes do Estado brasileiro. Recorrendo a imagens feitas em mais de trinta anos de indigenismo, acessando arquivos públicos e filmando, com os Guarani-Kaiowá, seus inimigos, Carelli, junto com Ernesto de Carvalho e Tita Soares, dedica-se ao desafio de contar a história, nomear o genocídio e retomar a crença na força ativa das imagens em contextos de luta, lançando ao cinema novas exigências, que “teriam como medida sua capacidade de intervir e contribuir efetivamente para a causa a que se dedica”, como afirma André Brasil[1].
Frames de Martírio: mulheres e crianças em Pyelito Kue
filmam ataques da milícia dos fazendeiros
Ao longo da última década, tempo exato de existência do CachoeiraDoc, testemunhamos o desejo de intervenção histórico-social instalar-se nos filmes e a aliança entre cinemas e lutas ir tramando-se obstinadamente. Por algum tempo, tratou-se de um movimento discreto, para não dizer invisível aos olhos da crítica. Mas já estava lá, entre nós, em 2010, um filme como Atrás da Porta, de Vladimir Seixas, que filma em parceria com famílias de moradores sem-teto do Rio de Janeiro a resistência a uma série de despejos orquestrados pelo Estado em conluio com empreiteiras. E, então, a partir de 2013, com o acirramento dos conflitos políticos no Brasil, as câmeras se proliferaram com as barricadas e passaram a ostentar sua participação intrínseca nos movimentos político-sociais. Nesse contexto, uma pergunta se impôs: o que pode, pelas lutas, o cinema? O que pode o cinema no seu tempo próprio, que não é o das urgências?
Em Ressurgentes, um filme de ação direta (2015), de Dácia Ibiapina, a pergunta encontrou abrigo. O filme torna visível uma série de movimentos sociais no Distrito Federal, para os quais a ocupação dos espaços públicos constitui-se uma tática de resistência no conflito entre projetos de cidade e de mundo. A produção de imagens-ação permeia essas ocupações de modo constitutivo, como parte das estratégias da ação política. É com elas, e com testemunhos de jovens militantes, que Ressurgentes trabalha. E o faz para dissolver fronteiras espaço-temporais entre a prática cinematográfica e a elaboração discursiva dos princípios, conquistas e fracassos das lutas, redimensionando o lugar da militância nas formas do cinema. Dácia Ibiapina e Guile Martins (montador), além de conjugarem a vibração das ações à sua revisão discursiva, encontram, pela montagem, modos de transcendência, projetando ou antevendo um futuro para as disputas em cena. A montagem em Ressurgentes opera pela lógica da resistência, e, por ela, o cinema vibra nos corpos já desfeitos da urgência, realimentando a energia das lutas.
É também pela montagem que Retratos de Identificação (2014), de Anita Leandro, constrói novas formas de visibilidade para a luta política, nesse caso a resistência de jovens guerrilheiros à ditadura civil-militar brasileira. Ao dispor os acervos da ditadura na mesa de montagem, Anita Leandro retoma imagens produzidas pelo próprio regime para restituí-las, em dignidade, aos guerrilheiros presos, torturados e mortos que estão nelas, violentamente, retratados. E participa, assim, da intensa disputa em torno da verdade histórica sobre o período marcado por mortes, desaparecimentos e torturas, uma disputa que, no campo cinematográfico, se desdobra em uma “tríplice tomada de posição”, como define a própria realizadora: "disputa pelas imagens"; "disputa com as imagens"; "disputa entre as imagens[2]. Trata-se, assim, de: 1- disputar o direito de acesso a essas imagens, mantidas por muito tempo como segredo de Estado, uma vez que constituem provas contra seus próprios torturadores-produtores; 2- disputar em favor dessas imagens, ou seja, garantir-lhes o valor irredutível de suas próprias dimensões políticas e estéticas; 3- por fim, cabe ao cinema mediar as diversas fontes documentais articuladas na lida direta na mesa de montagem, disputando a justiça histórica nos intervalos entre cada frame/foto/fotograma. Desse modo, Retratos de Identificação retoma as imagens arrancadas entre sessões de tortura, com uma tomada de posição que desdobra o compromisso histórico em profunda consciência formal; de modo que a forma não se sobressaí nunca à história. Num país em que a memória coletiva é sistematicamente espoliada, o filme resta como uma pergunta sobre o papel das imagens documentais na construção das narrativas históricas sufocadas pela violência de Estado e pelo projeto de Nação.
E quando a imagem falta? E quando a imagem fere, forja, fratura? “Da nossa memória fabulamos nóis mesmos”, responde Adirley Queirós, em Branco Sai, Preto Fica (2014). Antes disso, é com uma indagação que Adirley pontua seu primeiro longa – A Cidade é Uma Só? (2011): um confronto vibrantemente fabulado na periferia da cidade, da história e do projeto de nação cuja metonímia é a própria capital do país. Contra a utopia/farsa modernista da ordem e do progresso que edificou Brasília, Adirley remapeia uma cidade segregada, injusta e desigual, mas também vigorosa na sua verve inventiva, na sua capacidade de retomada pela subversão de fronteiras. No lugar da branquitude e do poder que vislumbrou a pólis do futuro no passado, são os filhos daqueles que construíram a cidade com as mãos, e que foram empurrados para fora dela, como Dildo e Zé Antônio, os protagonistas de um cotidiano de correria. Junto a Nancy, formam um trio de personagens que fabulam a história, seja pela retomada do documento histórico forjado, seja pela invenção da democracia que falta – o Partido da Correria Nacional. Transitando entre o plano piloto e a Ceilândia, entre o centro e a periferia, entre a ficção e o documentário, o filme sequestra ou pirateia as armas e armadilhas da história oficial, os documentos farsescos de Estado e a ficção da propaganda política eleitoral, hackeando os limites da (auto)representação. Assim, ao mesmo tempo em que desconstrói o totalitarismo do discurso sobre a capital federal, questiona os próprios recursos usados como evidências ou provas do passado: quem produz os arquivos da história? para quem? com quem? contra quem?
A reunião desses filmes revela ainda um cinema tecido por sujeitos que ao longo da história, e não apenas do cinema, foram objetos do olhar e do discurso hegemônicos predominantemente branco, masculino, cis-heteronormativo e elitista. A emergência e afirmação do cinema negro, indígena, LGBTQI+ e de mulheres está entrelaçada também à atuação e ocupação desses grupos em outros campos do poder e saber, como as universidades, na última década. Os curtas Travessia (2017), de Safira Moreira, Eu, Travesti? (2013), de Leandro Rodrigues, e Relatos Tecnopobres (2019), de João Batista Silva, surgidos em salas de aula (Escola Darcy Ribeiro, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e Instituto Federal de Goiás, respectivamente) constituem-se vigorosos exemplos do modo como uma juventude brasileira negra, indígena, queer e feminista está a fraturar a hegemonia dos tradicionais sujeitos históricos da cinematografia brasileira.
Travessia, primeira obra de Safira Moreira, cineasta baiana que faz parte de um grupo de jovens realizadoras negras que tem surgido nos últimos anos no Brasil, articula fotografias, vozes, música, poesia e performance num ensaio sobre a memória e a presença negra nas imagens e com as imagens. Na sua primeira sequência, enquanto os versos de Conceição Evaristo são recitados por uma voz jovem feminina, a fotografia de uma mulher negra a carregar um bebê branco nos braços, encontrada numa feira de antiguidades, é decupada em sucessivos cortes e reenquadramentos, forma de retomar a imagem, expurgando para o fora de campo o fardo da história. A montagem é, assim, para Safira Moreira, prática de libertação. Mas o filme não se encerra na lida com arquivos da opressão racial. São as imagens afirmativas de famílias negras que pousam para a sua câmera que fazem do curta, em sua materialidade performativa, a contestação viva do apagamento sistematizado pela colonialidade. Em Travessia, o cinema é espaço de emancipação, a realização do filme sendo, ela própria, um gesto, um eco de liberdade.
Eu, Travesti?, de Leandro Rodrigues, parte de Cachoeira, cidade no interior da Bahia. Na penumbra, a cidade exibe-se em sua ruína colonial: paredes descascadas, umidade, limo. É nessa paisagem da precariedade que o filme encontra seu caminho de possibilidade. A cidade, exposta em sua pobreza, é tanto o reduto de um cinema que se faz com parcos recursos quanto o espelho para um sujeito que vasculha sua memória. Nu, Leandro Rodrigues, ator e diretor do filme, ensaia gestos no meio dos escombros, enquanto ouvimos sua voz a confessar lembranças de uma infância marcada pela negação de si e pela opressão de gênero. Na sua (auto)performance como prática de auto-liberação, Eu, Travesti? inaugura algo comum em tantos outros curtas produzidos no Curso de Cinema e Audiovisual da UFRB, a exemplo de Arco do Medo (2018), de Juan Rodrigues, e Sair do armário (2018) e Lésbica (2018), ambos de Marina Pontes. E é o próprio Leandro Rodrigues quem oferece elementos para compreender a singularidade que toma forma aqui, como uma pulsão coletiva de cinema:
o singular nele (em Eu, Travesti?), assim como nos outros filmes feitos em Cachoeira, tem a ver com a retomada da voz por sujeitos-corpos marginalizados, periféricos, há muito silenciados. Essa diferença, a aparente incompletude dos/nos filmes, talvez seja produto desse corpo-voz descentrado, que se articula por meio de restos (de si, do outro, da própria linguagem).
A precariedade assumida como forma, condição de possibilidade e também motor revolucionário faz de Relatos Tecnopobres (2019) um panfleto para a retomada do território imaginado do futuro e da própria possibilidade de imaginar. Trata-se de uma “ficção especulativa em si tecnopobre que parece cada vez mais um documentário do nosso presente”, como muito bem define Kênia Freitas em texto do Festival Impossível, Curadoria Provisória[3]. Uma voz viaja desde o futuro para nos relatar as consequências trágicas do nosso passado-presente. Um presente que, de tão passado, exuma, sem nunca ter enterrado, valores e práticas de morte. O curta, antes mesmo do país ser contaminado pela pandemia, adquire ares proféticos ao denunciar um plano de extermínio dos grupos ditos periféricos e da classe trabalhadora perpetrado pelos donos dos poderes político-econômico-militar-tecnológico. Para muito além da denúncia, essa voz especula a luta do/pelo futuro, adquirindo corpo à medida em que o projeto revolucionário é revelado. A condição subversiva se estende também à própria estética do filme que sequestra e desvia imagens e sons produzidos com as mais altas tecnologias para fins revolucionários. Em contra-ataque ao ostensivo e avançado arsenal de guerra do inimigo opressor, o exército revolucionário tecnopobre ecoa ideias e estratégias de revolucionários de outrora e, assim como fez Marighella, é pela rádio que orquestram e convocam ao combate. Aos (tecno)pobres restou, esgotada, a Terra.
Atados a um compromisso irrevogável e constitutivo com a Terra, filmes fundamentais de realizadores indígenas, produzidos em territórios de retomada, surgiram nesta última década, a exemplo de Ava Yvy Vera – A Terra do Povo do Raio (2016), de Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites, Nũhũ yãg mũ yõg hãm: Essa Terra é Nossa! (2020), de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero, e Bicicletas de Nhanderú (2011), de Patrícia Pará Yxapy e Ariel Ortega. Cada um deles singularmente, bem como o conjunto diverso que formam (matéria para uma mostra inteira), conduzem o cinema a forçar também seus limites – ontológicos, éticos, políticos e produtivos.
Karaí Tataendy, em Bicicletas de Nhanderú nos alerta: “Os Tupã são assim. Eles não vêm só para trazer chuva, vêm também para nos proteger. Eles não caminham em vão. Pois nós não enxergamos os seres que nos fazem mal. Somente eles podem ver os seres que nos fazem mal”. Entre espíritos e fazendeiros, sonhos e festas, fogo e tempestade, o cinema é para os realizadores Mbya Guarani, Patrícia Pará Yxapy e Ariel Ortega, companhia na grande caminhada, elo entre velhos e crianças, instrumento à serviço do tempo, que ativa retomada de tradições e encontra sutilmente o lugar, muitas vezes em volta da fogueira, de onde se pode aprender a escutar o invisível no visível. É porque forja e oferta uma forma e um modo de ação que se ergue no enlace profundo com a vida humana e mais-que-humana que Bicicletas de Nhanderú porta uma pedagogia, que poderíamos chamar de pedagogia da retomada, e que poderia nos servir de guia para uma nova década de cinema pós-colapso.
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[1] BRASIL, André. “Retomada: teses sobre o conceito de história”. In: Catálogo do Forum.doc. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016, p.160.
[2] Ver LEANDRO, Anita. “Os acervos da ditadura na mesa de montagem”. In: LOGOS 45 Vol.23, Nº 02, 2º semestre 2016.
[3] FREITAS, Kênia. “Relatos de uma curadoria provisória”. In: https://cachoeiradoc.com.br/festivalimpossivel/relatos-tecnopobres/